domingo, 1 de mayo de 2005

O clone do totalitarismo

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, há mais de seis anos no poder, ameaça a estabilidade da América Latina com o financiamento e o apoio a grupos radicaisde países vizinhos, a formação de uma milícia civil, o usodo petróleo para chantagear as repúblicas da América Central, a compra de armas e a aliança com a ditaduracubana de Fidel Castro, de quem está se tornando um clone malfeito e extemporâneo. Na Venezuela, Chávez adotou um governo centralizador, mudou as leis para controlar melhor a oposição e aumentou o tamanho do Estado, levando à derrocada de uma das mais antigas democracias da região. Resultado: a população ficou maispobre, os investidores externos sumiram e a dívida pública aumentou

Por Diogo Schelp
Imagens da reportagem em VascainoPics.
Link original: http://veja.abril.com.br/040505/p_152.html

Presidentes de esquerda estão no poder no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai. No próximo ano, eleições poderão acrescentar à lista o Peru e o México. É um grupo heterogêneo quanto a métodos e personalidades, mas nenhum dos mandatários que o formam oferece risco para seus povos e os vizinhos. Curiosamente, o único presidente de países americanos que é uma bomba de efeito retardado, o coronel pára-quedista Hugo Chávez, da Venezuela, não pode ser classificado como esquerdista. Ele não tem passado socialista ou marxista, nem teórico nem prático. Veio do meio militar e tornou-se um populista autoritário e fanfarrão. Por três razões principais, Chávez hoje representa perigo para a democracia e ameaça à estabilidade na América Latina. A primeira é que, claramente, ele não se contenta em infernizar a vida do próprio venezuelano e começa a lançar pseudópodes por toda uma crescente área de influência no continente americano. Segundo, porque tem a mover seu expansionismo o dinheiro fácil dos petrodólares oriundos da riqueza do subsolo venezuelano. Terceiro, mas não menos preocupante, Chávez está semeando insurreição e instabilidade em países que, embora nominalmente democráticos, ainda lutam para solidificar suas instituições políticas e jurídicas e suas bases econômicas de progresso material. A combinação das três razões acima faz de Chávez um risco novo e grande no horizonte da sofrida América Latina.

Nos últimos seis anos, desde que foi eleito, Chávez usou o cargo para iniciar a construção em seu país de uma versão extemporânea do regime totalitário que existe em Cuba. O coronel ainda não atingiu a sofisticação que garante a sobrevivência de Fidel Castro, este sim um esquerdista autêntico, um fóssil da Guerra Fria que sobrevive em sua ilha particular como um capataz magnânimo mas repressor. Chávez, porém, já atingiu o patamar de comandante de um regime tipicamente autoritário, que compromete as liberdades essenciais. Curiosamente – mas não surpreendentemente – a operação desmonte da democracia venezuelana foi feita pelo que se acredita ser um dos meios mais democráticos de representação – os plebiscitos. Foram sete consultas populares em seis anos. Essa democracia direta passou por cima das instituições e permitiu ao chavismo reescrever a Constituição e demolir os outros poderes da República. Depois de uma longa queda-de-braço com a oposição, o presidente venezuelano venceu o plebiscito do ano passado que pretendia encurtar seu mandato. Com a vitória, Chávez encheu-se de força moral e partiu para a ofensiva para neutralizar qualquer desafio a sua autoridade.

Por cinco razões, alinhadas pelo cientista político mexicano Adrián Gurza Lavalle, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a Venezuela já não pode ser considerada um Estado democrático.

• A autonomia de poderes, princípio básico da democracia, foi suprimida. Chávez ampliou o número de juízes da Suprema Corte, de vinte para 32, e preencheu os novos cargos com aliados políticos. Juízes de instâncias inferiores podem perder o emprego caso assinem sentenças desfavoráveis ao governo.
• Numa democracia, se a oposição perde as eleições, ela continua a participar do jogo político. Na Venezuela a oposição está sendo amordaçada. Um novo Código Penal, que acaba de entrar em vigor, torna ilegal qualquer forma de crítica ao governo. No momento, 248 pessoas, entre jornalistas, sindicalistas, dirigentes políticos, professores universitários e militares, já estão sendo processadas por esse motivo.
• A lei da mordaça obriga a imprensa a adotar a autocensura. Comentários ou notícias podem ser interpretados como uma tentativa de desestabilizar o governo e dar origem a um processo. Outra legislação restringe os horários em que o rádio e a televisão podem transmitir noticiários.
• As regras do jogo político e institucional mudam constantemente, uma vez que Chávez se investiu de poderes extraordinários nos sete plebiscitos que convocou e venceu.
• Não há mais respeito pelas normas que regem o direito à propriedade privada. O governo começou seu projeto de reforma agrária desapropriando uma fazenda que abriga o maior rebanho de corte do país.
A essas somem-se os ataques à liberdade econômica, como o perpetrado na semana passada, quando Chávez ampliou o congelamento de preços da economia, tabelando também os juros bancários em no máximo 28% ao ano. É patético. Nada disso funciona – como os brasileiros sabem muito bem.

Uma novidade escandalosa do novo código penal da Venezuela é a revogação da presunção de inocência. O conceito de que qualquer pessoa é inocente até prova em contrário, criado na Revolução Francesa, é uma das bases do direito moderno. Abolir garantias individuais como essa foi justamente uma das primeiras penadas de Fidel Castro quando chegou ao poder em Cuba. Chávez demonstra necessidade quase patológica de se exibir como clone de Fidel Castro, o decano dos ditadores. Ambos se exibem em fardas militares e discursam por horas, misturando banalidades com assuntos de Estado. Não estivesse Caracas claramente substituindo Havana como quartel-general da insurgência revolucionária, tudo isso poderia ser mais uma risível patuscada de repúblicas bananeiras. Afinal, desde que o Muro de Berlim despencou, em 1989, sobre as utopias armadas e desarmadas da esquerda, ninguém mais leva a sério governos supressores da liberdade e centralizadores da economia.

A Cuba comunista nunca teve forças para se manter de pé sem a ajuda anual bilionária da extinta União Soviética, cuja bizarra estrutura se desmontou em 1991 tragada pelos próprios pecados e ineficiências. Sem a mesada que recebia da União Soviética, Cuba perdeu o fôlego para aventuras fora da ilha. Também já teria desmoronado sem o auxílio financeiro de Chávez. Fidel idolatra o presidente venezuelano. Vê nele a última tentativa de legar a seu povo uma herança menos amarga. Quase meio século depois da implantação do comunismo, Cuba é um país bem pior do que era nos anos 50. Antes do furacão Fidel, a ilha ostentava a quarta maior renda per capita da América Latina. Hoje tem a 15ª. Cuba era o terceiro de uma lista de onze países latino-americanos com o maior consumo de alimentos por habitante, com média diária de 2.730 calorias. Hoje a ilha ocupa o último lugar. A saúde e a educação melhoraram bastante. Mas muitos países, como Brasil, México e Costa Rica, atingiram resultados semelhantes sem escravizar seu povo, sem paredões – nem presidentes que vestem farda e fazem discursos de nove horas de duração.

No comando da quinta maior produção de petróleo, Chávez possui um caixa sem limites. Graças aos aumentos do preço internacional do barril, a Venezuela arrecadou 200 bilhões de dólares com as exportações do produto. "Chávez tem um objetivo claro: quer se tornar o grande líder de massas da América Latina", disse a VEJA o historiador venezuelano Manuel Caballero, o mais respeitado do país. Fidel tem no currículo uma revolução fracassada, mas que inspirou uma geração. O ditador cubano também conta com o alicerce do discurso marxista-leninista, que durante meio século deu as cartas em metade do planeta. Já o presidente venezuelano é da categoria caudilho iluminado, típico da América hispânica, cujos sonhos revolucionários resultam de fantasias muito próprias. "Chávez é um Fidel Castro sem cérebro e com petróleo", definiu a VEJA Andrés Oppenheimer, colunista do jornal americano Miami Herald e respeitado especialista em América Latina.

Se não há coerência ideológica em Chávez, seu plano estratégico é concreto. Em resumo, são cinco as ações externas mais identificáveis com que ele busca ampliar sua influência na América Latina.

• Primeiro, ele está usando o petróleo, abundante na Venezuela, para criar dependência nos países vizinhos. Os mais suscetíveis a essa estratégia são as pequenas nações da América Central e do Caribe, todas muito pobres, que importam da Venezuela até 80% do petróleo que consomem.
• Segundo, Chávez dá dinheiro e apoio político e técnico para movimentos de esquerda latino-americanos, muitos dos quais têm – ou já tiveram – o projeto de tomar o poder à força para instalar uma ditadura socialista.
• Terceiro, a Venezuela substituiu a União Soviética como patrocinadora do regime castrista em Cuba, fornecendo petróleo e abastecendo o país de bens de consumo industrializados, tudo a preço simbólico ou a fundo perdido.
• Quarto, o presidente venezuelano interfere nos assuntos internos de outros países de várias maneiras. Apóia candidatos à Presidência, patrocina movimentos radicais. Na Nicarágua, por exemplo, ele pediu votos ao sandinista Daniel Ortega e, no Peru, deu dinheiro a um grupo que tentou derrubar o governo com uma quartelada (veja quadro).
• Quinto, Hugo Chávez adotou um virulento discurso antiamericano, que soa como música aos ouvidos dos nostálgicos da Guerra Fria – e eles são numerosos entre a esquerda latino-americana. Uma esquerda que sempre se caracterizou por seguir caudilhos nacionalistas, bastando que eles tivessem um discurso antiamericano. Isso nasceu como estratégia oportunista. O mais melancólico agora é que tenha se tornado a essência das esquerdas. Uma pena.

Por que Chávez insiste em comprar briga com os Estados Unidos? Ele diz a toda hora que os americanos querem matá-lo ou estão prontos para invadir o país. Até agora, de real, o que se viu foi o governo de George W. Bush evitar respostas às provocações. Muito ocupada com a confusão que arranjou no Oriente Médio, a Casa Branca contava que países amigos de Chávez, mas com governos responsáveis, aconselhassem moderação ao coronel. Enquanto isso, as empresas americanas na Venezuela passaram a ser tratadas a pão e água. Sem maiores explicações, o governo de Caracas suspendeu um contrato que permitia à ConocoPhillips, a terceira maior companhia petroleira americana, explorar um campo petrolífero no país. Há três meses, fechou as oitenta lanchonetes da rede McDonald's e as quatro fábricas da Coca-Cola que operavam em território venezuelano. Ao ridículo da batalha dos McDonald's e da Coca-Coca, acrescentou-se na semana passada uma iniciativa hilariante: o anúncio em Havana, por Chávez e Fidel, da criação da Alba. Vem a ser a resposta dos dois à Alca, a área de livre-comércio das Américas proposta pelos Estados Unidos. A Alba é mais um disparate de Chávez que não vai interessar a ninguém.
Estima-se que a Venezuela esteja injetando em Cuba, a fundo perdido, o equivalente a 20% de todo o dinheiro que entra na ilha. Isso é ruim para os cubanos, pois com essa folga de caixa Fidel se sentiu à vontade para abortar qualquer vislumbre de abertura política e até mandou fechar os pequenos negócios particulares, como restaurantes, que eram o ganha-pão de tantos cubanos. É irônico como a revolução gerou um Estado oficial de mendicância: Cuba viveu durante décadas de mesada enviada por Moscou. Agora, sobrevive com donativos venezuelanos.

Os Estados Unidos dão mostras de que Chávez está conseguindo seu intento de ser notado. Uma reação parece inevitável e está em curso uma campanha diplomática para isolar o regime de Caracas. E precisará ser uma estratégia de longo prazo, pois Chávez tem boas chances de ganhar um mandato de mais seis anos. Uma das preocupações americanas decorre de compras de armas em quantidade muito acima do que seria razoável num país cujo Exército tem apenas 35.000 homens. De janeiro para cá, a Venezuela comprou mais de 7 bilhões de dólares em aviões de combate, helicópteros, navios e sistemas de radares. O pacote russo inclui 100.000 fuzis AK-47.

Os fuzis preocupam mais do que tanques porque não podem ser rastreados por satélites. Aviões e navios não têm utilidade para forças irregulares; fuzis AK-47, como os comprados pela Venezuela, são o armamento-padrão da narcoguerrilha colombiana e de guerrilheiros em geral. Os russos também venderam aos venezuelanos uma fábrica de munições. As Farc são bem armadas, mas têm grande dificuldade em obter munição. Chegam a pagar 2 dólares por uma bala para fuzil AK-47. Imagine que negócio dos sonhos é ter uma fábrica de projéteis logo do outro lado da fronteira. Mesmo que Chávez não tenha a intenção de fornecer armamentos para os guerrilheiros, ele não tem controle sobre a corrupção que domina todos os escalões de sua administração, inclusive o Exército. "Os planos de Chávez de montar uma fábrica desse tipo de munição devem preocupar não apenas os Estados Unidos, mas também os vizinhos da Venezuela", disse recentemente o vice-secretário de Estado americano Robert Zoellick.

Preocupam o Brasil, realmente. Nos primeiros momentos o governo Lula trocou juras de amor eterno com Chávez, a quem tratava como membro da mesma confraria de presidentes esquerdistas. As relações esfriaram bastante. Hoje não são hostis, mas as ações de Chávez são atualmente a maior fonte de irritação do presidente Lula no campo externo. O Itamaraty não esconde sua avaliação de que Chávez se ressente do respeito que Lula desperta no exterior. Cada vez que Chávez faz declarações exageradas, como a de que a secretária de Estado americana Condoleezza Rice (entrevistada de VEJA desta semana) tem uma queda por ele, Lula liga para o colega venezuelano e pede moderação. Chávez promete se comportar, mas não cumpre a palavra.

A Venezuela é um país com fartura de petróleo, mas praticamente sem nenhuma outra fonte de renda. Em 1958, um pacto garantiu estabilidade política até os anos 90, um dos mais longos períodos de democracia do continente. Ficou acertado que o dinheiro do petróleo financiaria um Estado clientelista. A queda nos preços do petróleo nos anos 80 pôs tudo a perder. A corrupção é endêmica na Venezuela. O presidente que Chávez tentou derrubar em 1992, Carlos Andrés Pérez, acabou preso por causa do desvio de 17 milhões de dólares. Desde 1990, onze presidentes latino-americanos foram depostos ou forçados a renunciar antes do fim de seus mandatos. Em quase todos os casos, foram derrubados por corrupção ou simplesmente porque governaram sobre economias fracassadas. O lado mais perverso dessa instabilidade é o sentimento de que o voto não é capaz de livrar o país dos corruptos ou de promover as reformas necessárias para melhorar a vida da população. É nesse ambiente que prosperam populistas como Chávez.
Não é surpresa que Chávez fascine tantos esquerdistas, que o vêem como uma novidade saudável na política latino-americana. Fazer avaliações desastrosas e seguir qualquer um que antagonize os Estados Unidos está no DNA dos militantes de esquerda. No passado, a esquerda também seguiu alegremente outros pais da pátria, como Juan Domingo Perón, cuja promessa era resolver todos os problemas da nação com um estalar de dedos e, claro, colocando a culpa de tudo nos Estados Unidos. Chávez foi recebido com furiosa alegria no Fórum Social Mundial em Porto Alegre. É um espanto que tanta gente o festeje e não o Chile, o único país latino-americano a diminuir a pobreza pela metade. É a maldição do caudilhismo, a doença senil do esquerdismo.

Com reportagem de Ruth Costas e José Eduardo Barella